Ver denovo aqueles cabelos grisalhos, com aquele sorriso de menino traquino, olhar de pai, jeito elegante, gentil e simpático. Ah, sería bom! E com certeza o meu pai adoraria isso hoje, porque há horas as lágrimas dele caem...
Este moço que gostaríamos de ver denovo se chama Edvaldo Borges. Ele foi um ícone para mim, alguém por quem tive muito respeito como se fosse um pai.
E de fato ele era o melhor amigo do meu pai...
Juntos eles tocaram pelo norte e nordeste com um grupo musical chamado "Skema 3", que teve início em meados de 83, mas durou pouco tempo (pouco mais de 3 anos). Com a saída do trompetista (Bossa), eles continuaram a tocar em restaurantes, pizzarias, festas particulares, clubes (na velha matinê de domingo) como grupo "Skema Certo".
Não me perguntem o "porque" deste nome, pois realmente não faço a mínima idéia! kkk!!!
Edvaldo cantava e meu pai (Chiquinho) tocava teclado.
... Aqui no Piauí os dois proliferaram o melhor da MPB, e principalmente, Boleros e Bossa Nova! Lançaram 3 bolachões (LPs), e anos mais tarde relançaram o primeiro disco do Skema 3 "Teresina Meu Amor" em cd.
Ah... "Bossa Nova" ... lembro bem que esta era a palavrinha mágica que tamborilava em meus ouvidos na infância. Bossa Nova era um mundo mágico que se eu conseguisse não tremer a voz, eu poderia tentar cantar com tal perfeição, atentando bem para a mudança de notas em compassos quebrados porém rítmicos. E eu deveria saber quebrar estes compassos de um jeito legal, eu deveria saber trocar as notas e gritar também... e tudo era mágico.
Há 11 anos eu estava na piscina do Clube dos Economiários, me esbaldando em nados, quando ele começa a chamar: "Tânia Samaaaaraaaa? Por favor, venha até o palco"... e eu sem entender nada saí da piscina, procurei uma toalha com medo de levar um choque, e fui até lá passando a toalha no corpo pra tentar secar todas aquelas gotinhas de água que se misturavam ao suor do nervosismo, de não ter a mínima noção do que poderia ser. Na minha casa sempre tivemos o costume de só chamar pelos dois nomes quando alguma coisa errada tinha acontecido. E eu cá comigo a pensar "ai meu Deus! o que eu fiz?"
Subo no palco e ele pergunta: "está tudo bem com você?", e eu respondo que sim, baixando a cabeça. Todos sabiam bem que naquela época eu preferiria morrer ao ver tanta gente me olhando, e os meus olhos de incerteza ao encará-lo não negava o desconforto. Alguns falavam: "deixa a menina, ela é tímida", e ainda sem entender, me pus ao lado dele à espera de uma frase, de um gesto, ou de qualquer coisa que ele me pedisse pra que eu saísse logo dalí.
Ele pega o microfone e diz: "Esta é Tânia Samara, filha do nosso maestro. Uma das melhores cantoras que eu já ouví em toda a minha vida!" Eu olhei pra ele sem entender nada. E ele continuou: "Ela tá assustadinha assim, mas ela se solta já já...não olhem muito pra ela...apenas ouçam!".
As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto, eu pensava no mico que pagaria diante de tanta gente que eu nem conhecia, até que ele se ajoelhou, e diante de mim falou: "vc confia em mim?", e novamente eu baixei a cabeça dizendo que sim, e ele completou: "Samaaaraaaa, não há ninguém aqui! só eu, vc e seu pai, e a gente vai cantar como se estivéssemos ensaiando, tá bom? Feche os olhos, eu tô do seu lado!".
Eu olhei para o meu pai que pediu pra eu fechar os olhos. depois olhei pra ele que com o olhar de "pidão" me pediu denovo. E eu fechei os olhos...
...e naquela explosão de sensações, inspirei, prendi o ar, e me pus a pensar! * Eu quero um buraco pra me enfiar! Eu quero um buraco pra me enfiar! Eu quero um buraco pra me enfiar!
Mas eu tava no lugar mais alto: o palco!
Ele segurou minha mão e expirei pensando "eu vou ouvir a canção"...
Fiquei a escutar um tempo e logo depois comecei a cantar. Cantei e me empolguei! Não lembrava que estava em um clube! Muito menos que estava em um palco! E pela primeira vez eu senti a sensação de orgulho mesclada à timidez de um artista cru que recebe calorosos aplausos.
Recebí por ele,
por meu pai (que até então não queria isto),
e por minha mãe (que o fez me ouvir cantar escondido).
Daí em diante ele foi me podando como um Bonsai. Me fazia escutar Luis Miguel, fazia a cabeça do meu pai pra que ele me deixasse estudar música, e o tempo foi passando...
Em 25 de Setembro de 2002, eu acordei com o chôro da mamãe, e a inquietude do meu pai. Demoraram para me dizer, tive que abraçar muito a minha mãe até ela conseguir dizer: "seu tio Edvaldo morreu".
Eu não entendí nada. Não sabia o significado da morte até o dia seguinte, quando ví o caixão dele ser fechado. Eu ainda tinha esperanças de que ele só estivesse dormindo...
Foi aí que eu percebí que não escutaria mais aquela voz a chamar: "Tania Samaaaaraaa"
Mas as canções... ainda ouço.
E caso você tenha uma bebida por aí e queira ouvir um bolerão daqueles que seus pais ouviam... Clique aqui!
Este é o texto mais lindo que já li por aqui, principalmente por ser algo íntimo e tão seu, revela toda sua sensibilidade e amor! Grato por esta lição de vida e parabéns ao Skema 3, aos músicos piauienses que não desistem às adversidades e a todos que perseveram apesar dos contras que aparecem vez em quando. parabéns para você, que soube transmitir e resituar-nos isto.